quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Mais um dia?


Dia de Verão
  
Mary Oliver
1990
  

Quem fez o mundo?
Quem fez o cisne, e o urso negro?
Quem fez a esperança?
Essa esperança, digo--
aquela que se atirou para fora da grama,
aquela que está comendo açúcar na minha mão,
que está movendo suas mandíbulas para trás e para frente ao invés de para cima e para baixo--
que está olhando ao redor com seus olhos enormes e complicados.
Agora ela levanta seus braços pálidos e cuidadosamente lava seu rosto.
Agora ela ergue suas asas abertas, e voa para longe.
Eu não sei exatamente o que é uma oração.
Eu sei como prestar atenção, como cair 
na grama, como ajoelhar-me na grama, 
como estar inativo e abençoado, como caminhar pelos campos,
que é o que eu tenho feito o dia todo.
Diga-me, o que mais eu deveria ter feito?
Tudo ao final não morre mesmo, e tão cedo?
Diga-me, o que é o que você planeja fazer
com sua única, selvagem e preciosa vida?


Qualquer coisa que eu diga depois desse poema simples e contemplativo vai parecer mastigada. Mas quero deixar claro o quanto ele nos incita a pensar sobre nossa imobilidade diante da vida, ao mesmo tempo em que nos questiona o que planejamos fazer dela. Você tem um plano para o curso da sua vida? 
Reparem, quem está agindo o tempo todo chama-se "esperança", no começo é o bicho que come açúcar das mãos de alguém e logo depois a esperança é alguém que levanta os braços e cuidadosamente lava seu rosto, como se começasse mais um dia de vida. Quanto nos é preciosa a sensação de levantar vôo? Ocorre quando tomamos essa decisão em ter esperança de que a vida pode ser mais do que o que vemos colados ao chão. Levantar vôo depois de haver fugido da grama, comido doce e lavado o rosto.
Quem ainda não pensou em desistir de tudo e começar uma nova vida, mais significativa? Quem ainda não se perdeu no meio de "tanta coisa pra fazer", sem dar-se conta do aqui e agora, do momento ao redor, lamentando não poder disfrutar dele? É mais comum do que pensamos. Temos noção de que nossa vida é única? Digo sem me referir a outras existências, pois ainda que nos deparemos com elas, a vida que você vive hoje será sempre sua única, selvagem e preciosa vida atual. Cuide dela.
A oportunidade que a vida nos dá é sermos responsáveis pelo que prezamos, tanto a nível individual como coletivo. Refiro-me a profissão que você gostaria de exercer, as atividades com as quais você gostaria de se ocupar, refiro-me as pessoas com as quais se relacionar. É fazendo escolhas corajosas que somos levados ao nosso enriquecimento psíquico e ao bem-estar da alma. Os passos que damos, os relacionamentos que iniciamos e finalizamos, as experiências que adquirimos, são todos caminhos trilhados que trazem conseqüências contínuas pro desenvolvimento e pra consolidação de uma personalidade rica e estável. 

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Trabalho, obra, opus.

Hoje faço algumas considerações sobre a composição de João Nogueira, "Canto do Trabalhador". Com versão de Casuarina:




Vamos trabalhar sem fazer alarde
Pra pisar com força o chão da cidade
A vida não tem segredo
Quem sentado espera a morte é covarde
Mas quem faz a sorte é que é de verdade
É só acordar mais cedo
É só regar, pra alimentar o arvoredo
Por essa luta eu não retrocedo
Pra ver toda a mocidade
Com os frutos da liberdade
Escorrendo de entre os dedos
Que é pra enterrar de uma vez seus medos
Se não mudar, o barco bate no rochedo
E vai pro fundo como um brinquedo
É bom cantar a verdade
Pro povo de uma cidade
E deixar de arremedo
E aí vai virar mais um samba-enredo.


Alguns, com essa música, sentem-se tocados pela mensagem de transformação através do trabalho, que foi o caso de quem me apresentou esse vídeo. Ainda assim, não é difícil adivinhar que "alguns muitos" outros vejam somente uma licença poética para falar de uma realidade (trabalho) que lhes parece torturante. Como entender a aversão ao tema? A própria origem da palavra trabalho vem do latim tripalium que, assustadoramente, era um instrumento de tortura. Mitologicamente falando nunca esqueceremos que Adão foi expulso do paraíso e como castigo lhe adveio a ordem para... trabalhar! "Do suor do teu rosto, comerás o teu pão", disse Deus a Adão no antigo testamento bíblico. Assim, ainda que o significado de exercício, atividade, labuta tenha se adjuntado ao seu nome, o trabalho nunca perdeu -ao menos não para nossa sociedade judaico-cristã, uma conotação, digamos, incômoda.

Aproveitando a necessidade constante de repensar a prática no consultório e, portanto, o meu trabalho, relembro a frase de Carl Jung em sua obra Psicologia do Inconsciente que dizia: "Onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro". Além de se aplicar as questões de relacionamento, como mencionei no artigo "Quando o ciúme é doentio", essa frase se encaixa como uma luva nas questões relativas ao trabalho. Afinal, como gostar de um momento em que julgamos estar sendo torturados ou que tem a sombra do castigo pairando sobre ele? A resposta é simples, não é possível. Esse significado está entranhado da necessidade de sofrimento para aquisição de poder e não passa nem perto da noção de amor e vocação que nossas atividades cotidianas nos exigem para nosso bem-estar.

Não pode faltar amor na atividade laboral. Difícil? O trabalho não deve padecer sob o império do poder, nem deve ser governado por ele. Ainda que o dinheiro, reconhecimento e status sejam parte do que nos motiva para o exercício laboral,  tenhamos em conta: no trabalho não pode faltar amor e é ele, sobretudo, que deve guiar o nosso labor diário. Para finalizar, quero lembrar a todos que o trabalho é a nossa obra, é o opus da nossa existência. Essa sim, é uma palavra com conotação preciosa que gostaria de compartilhar: esforço, atenção, cuidado. Sigamos perpetuando esse significado em nossas almas.