sábado, 8 de dezembro de 2012

O inconsciente


Pode ser que esse post pareça um pouco mais científico que os outros. Pode ser, também, que não tenham curiosidade ou interesse em saber como Jung define o inconsciente.  No entanto, asseguro a todos que compreender esse conceito ajuda e muito a entender a nossa necessidade de mitos, ritos, contos e, em última instância, da religião. 

Assim, dando continuidade as premissas junguianas sobre a Psique, detalho agora um pouco de como seria visto o "inconsciente" pelo analista junguiano. A curiosidade sobre esse conceito, já começa quando sabemos que foi um dos principais motivos do rompimento entre Jung e Freud -  este jamais admitiu que o inconsciente pudesse ser algo além de um depósito de lembranças reprimidas, enquanto Jung afirmava que o inconsciente é muito mais.

“Quando dizemos ‘inconsciente’ o que queremos sugerir é uma idéia a respeito de alguma coisa, mas o que conseguimos é apenas exprimir nossa ignorância a respeito de sua natureza... Há apenas provas indiretas sobre a existência de uma esfera mental de ordem sublime. Temos muito pouca justificação científica que prove em última instância sua existência. A partir dos produtos desse ‘eu’ inconsciente podemos tirar determinadas conclusões quanto a sua possível existência. Entretanto, todo cuidado será pouco para não cairmos num antropomorfismo exagerado, pois os fatos, em sua realidade, podem ser bastante diferentes da imagem que a nossa consciência forma deles (JUNG, 1999)”.

Burning Heaven - Julie Heffernan, 2011.


Nesta afirmação Jung denota o caráter realista de sua idéia a respeito do inconsciente como uma existência universal anterior a tudo. Sabe-se que, para o realismo, o universal transcende o particular, ou seja, não depende da subjetividade humana para a sua existência. Isso não anula o que falei no post Psique no Templo, e sim o complementa. Jung considera o inconsciente como uma instância real e primeira, que, segundo alega, jamais será plenamente apreendida pela consciência - visto que esta última também deriva do inconsciente. 

Segundo Jung, a existência do inconsciente não se comprova pela observação direta, a medição, etc., métodos estes atrelados aos sentidos, em si limitados. Os sentidos permitem a formação de idéias que podem ser diferentes dos fatos reais. O inconsciente para Jung é a realidade a priori; são, esses sim, os fatos reais. 

O céu está dentro de você, diria Jung e também o diria a religião. A astrologia nos dá um exemplo dessa afirmação ao explicar como os planetas, casas, signos e aspectos do céu no momento do seu nascimento indicarão a maneira habitual ou inconsciente de a pessoa reagir às coisas, podendo até mesmo mostrar os modos prováveis de nossa experiência. O que está dentro de você é o que vai se manifestar do lado de fora. A experiência é unitiva e pensar sobre ela, apenas fragmenta. Para os mais ortodoxos, o próprio Cristo disse que o "reino dos céus está dentro de nós". 

Utilizei a obra de arte de Julie Heffernan "Burning Heaven" para ilustrar esse post, pois o Céu em Chamas, em tradução livre, fala da tentativa de  humanizar o céu. Vejam o lustre - produção humana - pendendo do teto, o ponto mais alto, de uma pintura celestial, sublime. O lustre é como a teoria tentando iluminar e traduzir o inconsciente. Não é a toa que Jung diz que a cura só virá com uma experiência religiosa, no sentido de re-ligar o indivíduo a sua realidade primeira, jamais com a técnica interpretativa. 


Psique no templo.


     “Se, na qualidade de psicoterapeuta, eu me sentir como autoridade diante do paciente, e, como médico, tiver a pretensão de saber algo sobre a sua individualidade e fazer afirmações válidas a seu respeito, estarei demonstrando falta de espírito crítico, pois não estarei reconhecendo que não tenho condições de julgar a totalidade da personalidade que está lá a minha frente (JUNG, 2004)”.

'Psyche in the Temple of Love' by Edward John Poynter, 1882. 

No momento em que Jung afirma que o psicoterapeuta não tem condições de julgar a totalidade da personalidade de seu paciente, está considerando o caráter único do indivíduo, pois essa ausência de condições reflete a ausência de "regra geral" quando falamos sobre o indivíduo. Costumo dizer aos meus pacientes que não há receita de bolo, ou seja, a idiossincrasia do ser humano é presença certa em qualquer afirmação que possa ser feita a respeito dele. Porém, ao mesmo tempo, não devemos invalidar a existência de alguma generalidade. 

Em um momento posterior do mesmo parágrafo, Jung completa o raciocínio com a seguinte afirmação: “Posso fazer declarações legítimas apenas a respeito do ser humano genérico, ou pelo menos relativamente genérico. Mas como tudo que vive só é encontrado na forma individual, e visto que só posso afirmar sobre a individualidade de outrem, o que encontro em minha própria individualidade, corro o risco, ou de violentar, ou de sucumbir por minha vez ao seu poder de persuasão”.

Por esse motivo, escolhi a obra de arte acima para ilustrar esse texto, "Psyche in the Temple of Love" significa "Psique no Templo do Amor" em tradução livre. E a que templo eu estaria me referindo senão ao espaço sagrado da psicoterapia, onde os segredos e dores que afligem o ser humano são compartilhados e re-vividos? É importantíssima a consciência de que não há teoria suficiente na humanidade para levar um processo psicoterápico ao sucesso, se não houver a experiência vivida pelo analista (quanto mais, melhor) para balisar seu olhar sobre o outro! A relação é dialógica e depende, na mesma medida, daquele que revela a sua psique e daquele que consegue vivencia-la em si mesmo.

  

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Quatro momentos da psicoterapia: primeira fase, "confissão".


Os quatro "momentos" de uma psicoterapia segundo Carl Gustav Jung passam por "confissão", "esclarecimento", "educação" e "transformação". Pensando nesses momentos em termos teóricos, poderíamos dizer que a psicoterapia junguiana congrega as 3 principais correntes da psicologia, além dela própria, no decorrer do processo de análise.

A primeira fase é a confissão. Pense nisso da seguinte maneira: a premissa é a de corrigir distorções e percepções equivocadas do mundo. É como aquela citação de Henry Ford "Se você pensa que consegue ou pensa que não consegue, em ambos os casos está certo". Ou seja, é primordial escutar o que incomoda o analisando, seu "segredo" e trabalhar com ele na tentativa de que ele veja outras perspectivas.



Jung diz, em seu célebre livro A Prática da Psicoterapia, que: "No momento em que o espírito humano conseguiu inventar a ideia do pecado, surgiu a parte oculta do psiquismo; em linguagem analítica: a coisa recalcada. O que é oculto é segredo. O possuir um segredo tem o mesmo efeito do veneno, de um veneno psíquico que torna o portador do segredo estranho à comunidade. Mas esse veneno em pequenas doses, pode ser um medicamento preciosíssimo, e até uma condição prévia indispensável a qualquer diferenciação individual". O que o criador da psicologia analítica quer dizer com isso?

Jung está falando da primeira etapa do processo analítico, que é a confissão, compartilhar o segredo, ele cita, para melhor ilustrar, a necessidade da criação dos mistérios em várias sociedades ao longo da história. Podemos entender citando as sociedades secretas como a maçonaria, as confissões perante o padre, e mesmo uma sociedade como a daquele filme O Clube da Luta com Brad Pitt e Edward Norton, todos são momentos de criação de um "mistério", um "segredo" compartilhado e que de certa maneira funciona positivamente - senão terapeuticamente. 

Isso se dá porque possuindo o "mistério" o homem se protege contra a absorção pura e simples do seu segredo pela sociedade, e consegue se diferenciar da massa. Daí Jung diz que um segredo partilhado com diversas pessoas é tão construtivo, quanto destrutivo é o segredo estritamente pessoal, porque o segredo pessoal tem o mesmo efeito da culpa.

Tenhamos em mente que quando se tem "consciência daquilo que se oculta" o prejuízo é evidentemente menor, menor do que quando não se sabe que se está recalcando ou "o que" se recalca. Isso ocorre porque o segredo fica oculto até perante si mesmo, separa-se da consciência e forma o complexo. Lembra quando dizemos por aí? "Esse aí tem complexo de inferioridade"? Pois é, esse é só um tipo de complexo dos que se pode ter... O complexo opera com autonomia, não é perturbado pelas correções do nosso consciente, porque ignoramos a existência dele.

Khlalil Gibran disse certa vez: "Perguntais-me como me tornei louco. Aconteceu assim: (...) encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós". O que o poeta diz é completamente complacente com a existência do segredo e o paulatino "esquecimento" dele, transformando-o em complexo fácil, fácil. Ele fica, no final, aprisionado pelo complexo. O poeta era realmente louco? Não, pois através da própria poesia compartilhou seu segredo conosco.

Diz Jung: "Segredo e contenção são danos, aos quais a natureza reage, finalmente, por meio da doença. Entenda-se bem: são danosos somente quando o segredo e a contenção são de ordem exclusivamente pessoal. Se praticados conjuntamente com outros, a natureza se dá por satisfeita, e podem até ser benéficas virtudes. Apenas a contenção pessoal é nociva.

Só essa mudança já vai melhorar muito seu problema. E vai resolver? Sim, mas a curto prazo, pois outras situações vão surgir na sua vida e que novamente vão provocar conflitos já que, por exemplo: uma solução pra sua necessidade de fumar (que foi o problema que você veio resolver), não vai funcionar da mesma forma pra sua atitude agressiva no relacionamento. É necessário passar pra outra fase da análise.


quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O que esperar de uma análise?

Entrar em análise é um ato de bravura, humildade e, por si só, um sinal de amadurecimento psíquico. 

O resultado, no entanto, recompensa: a saúde e bem-estar global que sempre almejamos encontrar tornam-se mais próximos. O processo analítico junguiano, quando conduzido em longo termo, pode ajudar no encontro do que muitos chamam de "sentido de vida". São expectativas altas, mas que só poderão ser alcançadas por aquele analisando que se colocar genuinamente em processo. É necessário encarar seus monstros, admitir a existência daquele lado que você mesmo rejeita por tão sombrio que parece ser, dar-se conta de velhos padrões de comportamento enrijecidos pelo ego e já costumeiros no seu relacionamento interpessoal e ter a coragem de decidir se desenvolver em meio a tantos entraves e dificuldades. 

O inconsciente não é apenas um repositório de conflitos, ele carrega sementes de desenvolvimento psicológico que vão florescer, são nossos potenciais psíquicos. Ao contrário de algumas correntes que buscam esmiuçar conflitos neuróticos mal resolvidos, o processo de análise junguiana preza pelo bom relacionamento entre inconsciente e consciente, é quase como um casamento: "Uma pessoa vem para a análise porque o relacionamento entre o seu consciente e o seu inconsciente está desconfortável", diz Roderick Peters, analista junguiano sediado em LondresOs analistas junguianos trabalham com a ideia de que não há necessidade de interpretação, mas sim de mediar esse encontro. 

Um ego super inflado, numa postura de super poderoso, grandioso, pretensiosamente dono de si, pode dificultar esse processo de trazer  a luz o "si mesmo". Essa tarefa tão delicada demanda, de acordo com Jung, "uma profunda deflação egóica" e todos sabemos que essa não é tarefa fácil. Um ego em "deflação" é um ego que se apresenta sem a sua dura couraça, ao menos durante a sessão da análise, sem a qual o indivíduo permite olhar-se com honestidade. Dessa forma, durante um processo analítico de longo termo, teremos sucesso quando conseguirmos deslocar o centro da nossa personalidade do ego para um centro maior do que nós mesmos. O aspecto doloroso dessa jornada é um preço baixo que se paga para a mudança positiva que ocorre no seu bem-estar físico e psíquico.

Para finalizar, retomando o que foi dito ao início, deixo um dado importante para aumentar a segurança e o conforto daqueles que fazem ou pensam fazer uma psicoterapia analítica. De acordo com o professor de Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Liverpool, PhD. Andrew Derrington, pesquisas financiadas por seguradoras na Alemanha, Áustria e Suíça demonstraram que pessoas que fazem psicoterapias de longo termo - como a análise Junguiana - tem custos médicos mais baixos durante suas vidas. Um bom incentivo pra investir na sua saúde global!

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Mais um dia?


Dia de Verão
  
Mary Oliver
1990
  

Quem fez o mundo?
Quem fez o cisne, e o urso negro?
Quem fez a esperança?
Essa esperança, digo--
aquela que se atirou para fora da grama,
aquela que está comendo açúcar na minha mão,
que está movendo suas mandíbulas para trás e para frente ao invés de para cima e para baixo--
que está olhando ao redor com seus olhos enormes e complicados.
Agora ela levanta seus braços pálidos e cuidadosamente lava seu rosto.
Agora ela ergue suas asas abertas, e voa para longe.
Eu não sei exatamente o que é uma oração.
Eu sei como prestar atenção, como cair 
na grama, como ajoelhar-me na grama, 
como estar inativo e abençoado, como caminhar pelos campos,
que é o que eu tenho feito o dia todo.
Diga-me, o que mais eu deveria ter feito?
Tudo ao final não morre mesmo, e tão cedo?
Diga-me, o que é o que você planeja fazer
com sua única, selvagem e preciosa vida?


Qualquer coisa que eu diga depois desse poema simples e contemplativo vai parecer mastigada. Mas quero deixar claro o quanto ele nos incita a pensar sobre nossa imobilidade diante da vida, ao mesmo tempo em que nos questiona o que planejamos fazer dela. Você tem um plano para o curso da sua vida? 
Reparem, quem está agindo o tempo todo chama-se "esperança", no começo é o bicho que come açúcar das mãos de alguém e logo depois a esperança é alguém que levanta os braços e cuidadosamente lava seu rosto, como se começasse mais um dia de vida. Quanto nos é preciosa a sensação de levantar vôo? Ocorre quando tomamos essa decisão em ter esperança de que a vida pode ser mais do que o que vemos colados ao chão. Levantar vôo depois de haver fugido da grama, comido doce e lavado o rosto.
Quem ainda não pensou em desistir de tudo e começar uma nova vida, mais significativa? Quem ainda não se perdeu no meio de "tanta coisa pra fazer", sem dar-se conta do aqui e agora, do momento ao redor, lamentando não poder disfrutar dele? É mais comum do que pensamos. Temos noção de que nossa vida é única? Digo sem me referir a outras existências, pois ainda que nos deparemos com elas, a vida que você vive hoje será sempre sua única, selvagem e preciosa vida atual. Cuide dela.
A oportunidade que a vida nos dá é sermos responsáveis pelo que prezamos, tanto a nível individual como coletivo. Refiro-me a profissão que você gostaria de exercer, as atividades com as quais você gostaria de se ocupar, refiro-me as pessoas com as quais se relacionar. É fazendo escolhas corajosas que somos levados ao nosso enriquecimento psíquico e ao bem-estar da alma. Os passos que damos, os relacionamentos que iniciamos e finalizamos, as experiências que adquirimos, são todos caminhos trilhados que trazem conseqüências contínuas pro desenvolvimento e pra consolidação de uma personalidade rica e estável. 

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Trabalho, obra, opus.

Hoje faço algumas considerações sobre a composição de João Nogueira, "Canto do Trabalhador". Com versão de Casuarina:




Vamos trabalhar sem fazer alarde
Pra pisar com força o chão da cidade
A vida não tem segredo
Quem sentado espera a morte é covarde
Mas quem faz a sorte é que é de verdade
É só acordar mais cedo
É só regar, pra alimentar o arvoredo
Por essa luta eu não retrocedo
Pra ver toda a mocidade
Com os frutos da liberdade
Escorrendo de entre os dedos
Que é pra enterrar de uma vez seus medos
Se não mudar, o barco bate no rochedo
E vai pro fundo como um brinquedo
É bom cantar a verdade
Pro povo de uma cidade
E deixar de arremedo
E aí vai virar mais um samba-enredo.


Alguns, com essa música, sentem-se tocados pela mensagem de transformação através do trabalho, que foi o caso de quem me apresentou esse vídeo. Ainda assim, não é difícil adivinhar que "alguns muitos" outros vejam somente uma licença poética para falar de uma realidade (trabalho) que lhes parece torturante. Como entender a aversão ao tema? A própria origem da palavra trabalho vem do latim tripalium que, assustadoramente, era um instrumento de tortura. Mitologicamente falando nunca esqueceremos que Adão foi expulso do paraíso e como castigo lhe adveio a ordem para... trabalhar! "Do suor do teu rosto, comerás o teu pão", disse Deus a Adão no antigo testamento bíblico. Assim, ainda que o significado de exercício, atividade, labuta tenha se adjuntado ao seu nome, o trabalho nunca perdeu -ao menos não para nossa sociedade judaico-cristã, uma conotação, digamos, incômoda.

Aproveitando a necessidade constante de repensar a prática no consultório e, portanto, o meu trabalho, relembro a frase de Carl Jung em sua obra Psicologia do Inconsciente que dizia: "Onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro". Além de se aplicar as questões de relacionamento, como mencionei no artigo "Quando o ciúme é doentio", essa frase se encaixa como uma luva nas questões relativas ao trabalho. Afinal, como gostar de um momento em que julgamos estar sendo torturados ou que tem a sombra do castigo pairando sobre ele? A resposta é simples, não é possível. Esse significado está entranhado da necessidade de sofrimento para aquisição de poder e não passa nem perto da noção de amor e vocação que nossas atividades cotidianas nos exigem para nosso bem-estar.

Não pode faltar amor na atividade laboral. Difícil? O trabalho não deve padecer sob o império do poder, nem deve ser governado por ele. Ainda que o dinheiro, reconhecimento e status sejam parte do que nos motiva para o exercício laboral,  tenhamos em conta: no trabalho não pode faltar amor e é ele, sobretudo, que deve guiar o nosso labor diário. Para finalizar, quero lembrar a todos que o trabalho é a nossa obra, é o opus da nossa existência. Essa sim, é uma palavra com conotação preciosa que gostaria de compartilhar: esforço, atenção, cuidado. Sigamos perpetuando esse significado em nossas almas.


quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Os músculos e o corpo como reduto.


O corpo paradoxal.
Sim, o corpo é nosso porto seguro. Através disso, quero dizer a vocês que é pelo corpo que nos apreendemos, nos organizamos, manipulamos, transformamos, sobrepassamos como indivíduo no meio dos demais, seja por meio de cirurgia, terapias, drogas ou uma força estóica. Ele está ali como testemunho da nossa história, é o corpo que nos permite gravar ou medir as transformações pelas quais passamos - até mesmo sociais. Essa é uma ideia que vem sendo estudada e aparece bem no livro "Historia del cuerpo" (Corbin, Courtine e Vigarello), mais claramente no capítulo "El siglo XX". 

A partir disso, quero considerar o corpo masculino e as exigências do fisiculturismo. É difícil julgar ou classificar como não saudável um hábito que, ainda que pareça obsessivo, transpira saúde. Vemos nos anúncios desse público algo que se assemelha aos ascetas! Sim, não se surpreenda, aos ascetas. Os praticantes dessa cultura compreendem que para ter a mente sã, não haverá outro meio senão trabalhar em seu próprio corpo, em sua "mortificação" (sim, porque há dor!) e disciplina. É a transcendência por um "algo maior".

"An animal in the ring, a monster in the gym".
(Um animal no ringue, um monstro na academia)
No entanto, aqui entra minha questão: o que seria esse algo maior para o qual se rendem os fisiculturistas?  A uma necessidade estética? Particularmente eu diria que não, pois muitas vezes seus corpos chegam a se assemelhar a uma máquina. Ao seu altar interior? Narciso? Parece-me que os seus corpos são a materialização de um domínio ideológico e subjetivo ao mesmo tempo.

O corpo do fisiculturista não teme as contradições espelhadas nele próprio! Esmerando-se cada dia pela perfeita similitude com um animal ou uma máquina (vide capas de revistas).
Mas além da linha tênue que encontramos na prática do fisiculturismo, existe aqui também uma dimensão ignorada por muitos que é a da transgressão. A partir de certo ponto, o corpo do fisiculturista  já não admite "representar algo" ou "mascarar", como no caso do post anterior sobre o corpo feminino. Ele está ali como um pedaço de carne e simplesmente é. Dessa forma, esse corpo atinge dimensões que chocam e transgridem. 

Termino essa reflexão com uma lógica proposta por Beatriz Ferrús, ainda que o fisiculturismo traga um continuum de um corpo docilizado e disciplinado, por outro lado é uma hipérbole que ameaça, dado seu caráter indizível e paradoxal. Seus corpos têm o caráter de estar a ponto de irromper. Esse é só mais um exemplo do nosso corpo como possibilidade de atuação, de confronto e de não adequação e ao mesmo tempo de porto seguro do nosso ser, reduto da nossa subjetividade - tanto para os adeptos do fisiculturismo, como para os mais sedentários mortais. 

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O corpo feminino e olhar do outro.


Começo com as perguntas de Judith Butler: "Que corpos chegam a importar? E por quê?". Perguntas que chegam aos nossos ouvidos depois de refletir sobre a "materialidade do corpo". Os corpos que importam para a nossa sociedade, sabemos, são os corpos submissos a uma determinada ordem que vem das telas de cinema, televisão, anúncios, desejos de corpos construídos desde o nosso nascimento.  Nossos corpos, dóceis, acabam por obedecer e perpetuar os sistemas de normas e relações de poder: corpos de mulheres e homens, assim chamados porque é assim desde sempre.

Outro dia, uma amiga comentava que ao assistir a novela (já não sei se das 6h, das 7h, das 8h ou 10h) se deu conta: "As pessoas não são assim na vida real! Todo mundo lá é bonito… E que corpos são esses?! A maioria da população brasileira corresponde a aquilo que é mostrado ali?". Não, óbvio que não. Existe um texto muito bonito, chamado "Antieros" de Tununa Mercado (2006), que cumpre uma função muito importante para aqueles que -insatisfeitos com o corpo, com a função que dão a ele, ou que não se sentem mesmo adequados aos padrões que encontram por aí- se deprimem, maltratam sua autoestima e gastam rios de dinheiro para encontrar uma satisfação que nunca chega! Em seu texto, Mercado reivindica a disruptividade, a não-conformidade de nossos corpos.   

Como ser um corpo indócil e encontrar a satisfação pessoal?

Em "Antieros" as palavras de Mercado reescrevem a erótica e corpo femininos a partir de um lugar já bastante colonizado pelos "Outros": o espaço doméstico. É incrível como ela consegue dar uma volta nos chavões machistas sobre a dona-de-casa e fazer desse espaço e desse ato um lugar de protagonismo feminino. Sim, muito bom para a teoria feminista. Mas o que isso significa em termos práticos? Significa que temos um instrumento muito poderoso para subverter essas normas estabelecidas: o nosso corpo! É o aspecto performativo do corpo! Diria Butler que a realidade é criada a partir de atuações/performances sustentadas pela sociedade. Ou seja, enquanto nos submetemos ao que há aí nas telinhas, perdemos a oportunidade de construir nosso próprio espaço e sermos valorizadas pelo corpo que temos.

 Logo abaixo, mostro uma propaganda dos "Comprimidos Vikelp" da década de 40, que vi numa rede social (sim, o Facebook é um ótimo instrumento de pesquisa para o blog!): 




Nietzche já havia denunciado um caráter artificial quando descreveu a "feminilidade como artifício, simulacro, forma sem fundo". Mas foi a psicanalista Joan Rivière que nos deu a chave de ouro: a feminilidade mascarada. Usar a "máscara" do corpo é um artifício para a nossa efetividade, reduz a ansiedade que é gerada pelo medo de ser punida por haver usurpado um espaço de poder historicamente masculino. Assim ela acaba concordando com o conceito de persona de Jung. Ou seja, no fundo, não existe diferença qual personagem você veste seu corpo, ir vestida como "vadia" ou como "princesa" não destitui você da sua feminilidade verdadeira, mas sim te dá liberdade de atuação. O mesmo serve para os homens, pois esse mecanismo de controle envolve outras nuances quando falamos do gênero masculino, por isso mesmo o corpo masculino será tema do próximo post. 

A palavra de ordem é não se submeter a essa ditadura de corpos e se libertar da culpa e da inadequação através da liberdade do próprio corpo!! Seja você mesmo, seja quem você quiser, mas sempre tendo em mente que esse faz-de-conta de corpos perfeitos não é o mundo real. Se quisermos entrar nele, que tenhamos autoestima e autocrítica o suficiente para saber que é uma escolha pessoal e não uma imposição - assim arcamos melhor com as "conseqüências" da escolha e tiramos de letra o olhar do outro!

quinta-feira, 5 de julho de 2012

"La maison en petits cubes", de Kunio Kato.

Quando o assunto é o mergulho em nossas memórias, vivências e sentimentos mais importantes, esse curta-metragem é um dos mais bonitos e verdadeiros que já assisti. Indicado por uma psicóloga amiga e junguiana, ele resume em 12 minutos nosso sentimento de limitação, a certa altura da vida, diante de tudo que já vivemos e gostaríamos de resgatar. "Coisas" que ficaram perdidas pelo caminho da nossa história, mas que são importantes para valorizar e compreender quem somos e de quê somos feitos estão aqui bem ilustradas. É de chorar... Ao assistir, a emoção pode tomar conta daqueles mais reflexivos ou com a sensibilidade mais aflorada.


Para os que gostam de compreender através de termos mais técnicos o filme fala de complexos, animus e anima, individuação, dentre outros conceitos junguianos fundamentais. Bem, esqueçamos os conceitos e partamos para a vivência. Bom filme e boa reflexão!  

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Quando o ciúme é doentio?



Todos um dia já sentimos ciúmes, ele faz parte da categoria de emoções humanas e não é considerado patológico (doentio) por si só. Para quem quer entender um pouco mais sobre esse tema, deve ter em mente que o ciúme seria uma emoção um pouco mais refinada que o medo, sem deixar de ser tampouco um "afeto de proteção". Prosseguindo nessa abordagem, é importante lembrar que, por outro lado, a relação entre o ciúme romântico e a violência é reconhecida pelos estudos psicossociais e jurídicos, a ponto destes últimos utilizarem o termo "passional" para qualificar crimes e ajudar a regular situações e proteger as pessoas.

Aqui entra a pergunta: qual fator seria determinante para considerar o ciúme como patológico ou não? Bem, sem entrar no mérito da psiquiatria, o fator sócio-cultural tem um peso incontestável, já que é esse fator que dá a medida do modelo ideal de relação. Por exemplo, há uma óbvia diferença entre o modelo de relação afetiva de outras culturas onde a religião e a lei permitem a poligamia, ou ainda, as culturas onde o modelo de relação é o de uma mulher que dedica toda a sua vida ao marido e ao casamento. Essa variável não pode ser esquecida na hora de compreender as relações de casal.

Um exemplo de mulher "ciumenta" estava na mitologia grega, a deusa Hera passou "a vida" tentando descobrir as deusas, semi-deusas e mortais com as quais o seu marido Zeus (entidade máxima do Olimpo) tinha casos. Desenvolveu estratégias e artimanhas para punir tais mulheres e mesmo os frutos dessas traições, filhos bastardos de Zeus que mais tarde se juntaram aos demais no Olimpo. Outro exemplo da mitologia, que não é descrito como ciúme, mas que não deixa de ser violento e um zelo além do normal, é do deus Hades que raptou a donzela amada e a manteve cativa em seu reino subterrâneo, sem contato nenhum com o mundo do qual ela veio. Somente pela intercessão da sua mãe junto a Zeus, Perséfone pôde visitar a superfície três meses a cada ano. 

Para finalizar essa introdução ao tema, não perca de vista que o ciúme existe a milênios e está baseado em concepções de certo e errado que nos são ensinadas pelos outros.  Por tanto, não se culpe por esse sentimento, mas lembre que quando a situação chegar ao ponto que o seu "ideal de relação" não corresponder mais a complexidade que é uma relação humana, pode significar que esse ciúme está desmedido e acabará por prejudicar o casal. Sobretudo, jamais deixe esse sentimento tomar conta e sobrepor a individualidade da pessoa que você ama. Como diz a analista junguiana Elizabeth C. C. Mello, "O contrário de amor é o poder, e não o ódio. Poder que aparece em pequenas manobras, nas tentativas de controlar o outro -a nós mesmos- e os sentimentos interpessoais"A meta é preservar a liberdade e a confiança mútua.


terça-feira, 15 de maio de 2012

Relacionamentos

Falta menos de um mês para o dia dos namorados e é com esse espírito que vou direcionar o tema de hoje para o relacionamento de casal. Falar sobre o amor nos provoca certa comoção, já que a imagem ideal do "amor romântico" nos cobra um roteiro que deveríamos cumprir na vida. É então que começamos a questionar se estamos no caminho certo. Para ajudar o leitor a responder essa questão e transitar mais tranqüilamente por essa área da vida, proponho algumas reflexões.

Bem, para começar cabe lembrar que ensinados por nossa cultura, costumamos escutar que amar é sofrer, que amor rima com dor, que para mantermos uma relação estável devemos nos resignar a viver uma experiência dolorosa. Seria a renúncia suprema por um sentimento supremo. Mas afinal de contas, para nosso próprio bem-estar, o que realmente deveria ser considerado na hora que miramos nossas relações? Amar é mesmo sofrer?

Não nos faltam exemplos em filmes e músicas, dos mais antigos aos mais atuais, de modelos ideais de relacionamento. O dito amor romântico é como um guarda-chuva sob o qual cabem conceitos bem distintos uns dos outros: sexo, sentimento, desejo, status social e inclusive o casamento. No entanto, cabe aqui separar as coisas, para uni-las logo mais. Devemos ter muito cuidado ao comprar o que diz o comércio, certas revistas e programas de televisão. Estar em uma relação de casal esperando que todas as áreas da sua vida sejam resolvidas num passe de mágica e abrindo mão de sua individualidade pode levar você a situações aterradoras.

O amor como o sentimento universal e inquestionável quase torna-se sinônimo dessa idéia: sofrer por amor é inevitável e é um ato heróico. Ainda que pareça estranho dizer isso, devo alertar aos navegantes que para amar alguém e ser amado ninguém deveria abrir mão de sua autonomia, nem de ser feliz. Como diria Walter Riso, psicólogo ítalo-argentino:

"(...) esquecemos de algo elementar: nem todos os tipos de afeto (assim como nem todos os tipos de pessoas) convêm ao nosso bem-estar".

Há uma idéia ardilosa nesse conceito tão estendido, tão amplo de casal e de amor em todas as suas vertentes e variedades que nos impede de ser pessoas mais completas, mais inteiras. Como explicar isso? É que em nome do amor muitas vezes perdemos nossa individualidade e vivemos em um cotidiano de dependência e renúncia pessoal. Assim, na sociedade O casal acaba sendo o protagonista em detrimento dos dois seres humanos que estão ali dentro suando a camisa para a coisa toda acontecer. Esse relacionamento acaba ganhando conotação de propriedade privada e as coisas vão ficando cada vez mais complicadas: "se você não for minha, não vai ser de mais ninguém", dizem os autores de violência contra a mulher quase sempre embalados por motivos passionais. Além deste, temos muitos outros problemas decorrentes desse ideal de casal e de amor: depressões, tentativas de suicídio, baixa auto-estima, isolamento social, etc.

É importante ter em mente que nossos corpos e nossas vidas não devem ser atribuídos a um roteiro preestabelecido. Podemos sim ter relações mais saudáveis, com um sentimento de amor que contenha o cuidado, o respeito e o amor-próprio, mas para isso devemos dar um passo na direção de relacionamentos e pessoas que nos façam mais felizes, com menos dependência de algo socialmente criado e em consonância com nosso bem-estar. Para que consigamos esse resultado, podemos começar revisando  nossa vida amorosa e nossas próprias escolhas. Vamos tomar essa tarefa como meta, para um dia dos namorados mais feliz para todos!


terça-feira, 24 de abril de 2012

Depressão e Transformação

A depressão é classificada pela publicação de Classificação Internacional das Doenças - o CID-10, dentre os Transtornos de Humor. Apresenta-se sob diferentes formas clínicas que compreendem alterações no estado de humor ou afeto, sejam o rebaixamento ou "subida" do mesmo. O episódio da depressão propriamente dita varia em grau e intensidade, de leve a severo, que pode ser determinada pelo número de sintomas. Dentre estes sintomas destaca-se a diminuição do humor, redução de energia e diminuição da atividade.

Todos sabemos que negligenciar a saúde mental tem sido uma prática da nossa sociedade. Essa negligência está presente há muito tempo mundialmente, em diversas classes sociais. Saúde mental e - consequentemente - depressão, é um assunto tabu em muitas famílias da nossa era, como foi o câncer alguns anos atrás, e que acaba virando segredo familiar. Em uma pesquisa recente, a Dra. Gro Harlem Brundtland apontou que quanto maior o faz-de-contas ou a postura individual de ignorar o estresse emocional, maior será a probabilidade desse mesmo indivíduo ser afetado por uma psicopatologia.

Sabendo disso, que tal nos informarmos e buscarmos ajuda profissional sobre o tema? Há muito material a respeito da depressão, são inúmeros livros e revistas que tratam desse assunto, a maioria deles sempre enfatizando o ponto de vista fisiológico. Mas é bom lembrar a todos que quando o assunto é a psique criativa a visão puramente fisiológica não é suficiente. Nós somos mais do que matéria, somos também psique, que em grego significa alma.

Partilho da visão junguiana, que entende que corpo e psique estão bastante conectados e fechados entre si para encontrar em um mesmo sintoma a doença e a cura. O que quero dizer com isso ao leitor é que esse mal-estar da alma humana encontra respostas às suas dores em si mesmo. Podemos ser resgatados do que nos aflige através do que nos aflige. Parece compreensível que para acontecer a transformação psíquica - que poderíamos chamar também de "maturidade" - em um nível mais elaborado, um chamado precisa ser feito desde os níveis mais profundos da psique, que se não for atendido voluntariamente vai acabar aparecendo através de um sintoma.

A depressão, como uma perspectiva da Alma, vem atender a esse chamado. Em outras palavras, está a cargo da Alma (Psique) a "descida aos infernos para a posterior redenção":


A alma volta constantemente às suas feridas para extrair delas novos significados; volta em busca de uma experiência renovada. Ficamos familiarizados com nossos complexos e nosso sofrimento. O ego, identificado com o arquétipo do herói, chama a repetição de neurose. Mas na repetição, na circularidade, o ego é forçado a conscientizar-se de que há uma outra força governando a coisa toda. Na repetição o ego é forçado a servir à psique. Há um aspecto ritual aqui, uma humilhação. A circularidade, por fim, nos personaliza. Do ponto de vista da alma, a repetição é uma maneira de nos tornarmos aquilo que somos (BARCELLOS, 1991).


Deprimir, "profundar" segundo o dicionário Aurélio quer dizer: "Tornar fundo ou mais fundo; escavar; pesquisar, perquirir, entender, ou compreender perfeitamente, penetrar". Dito isto, lembramos novamente que a tendência do ser-humano é o crescimento e a universalização e que um dia alcançaremos seres e condições que parecem distantes, mas que para isso precisamos primeiro conquistar a nós mesmos.

Para finalizar, tenhamos em mente que a depressão é uma oportunidade de transformação e que também é uma resposta da nossa alma a tanta superficialidade e "mania de grandeza" que pode estar governando você. O aprofundamento em si mesmo através da depressão é uma tentativa de auto-cura. Encontra-se aqui a importância da psicoterapia como facilitadora do reencontro do paciente em depressão com o significado perdido, de efeito transformador.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Trabalho com os Sonhos


Uma das principais técnicas da psicoterapia junguiana é o trabalho com os sonhos. Expressão da psique como um todo, os sonhos revelam as diferentes dimensões da vida do cliente, seus conflitos, a origem desses conflitos, seu prognóstico e apontam o caminho para cura.

Mesmo que você não esteja em análise no momento, já pensou em anotar seus sonhos em um "diário"? Sim, esse hábito é muito saudável e nos ajuda a compreender melhor nosso psiquismo. Independente da ajuda de um analista, você mesmo pode ver a evolução dos personagens, roteiros, símbolos e situações que se delineiam na sua tela mental enquanto você dorme. 

É muito comum que ao despertar tenhamos a memória viva do que sonhamos e minutos depois tudo desaparece, acontece que quando entra o "intelecto" (nossos pensamentos, interpretações, impressões sobre o que sonhamos) os símbolos vão ficando difusos. Por isso, nada mais valioso do que manter uma caderneta ao lado e anotar, depois você pensa sobre o que sonhou e faz suas avaliações. 

Em algumas culturas contemporâneas da África os sonhos têm um valor premonitório e também de "mediador" das relações. Os Griot no Senegal, por exemplo, acreditam que o sonho da noite anterior é que determinavam como a pessoa deveria se comportar naquele dia: o que vestir, o que comer, o que fazer, os animais da pessoa, as plantas, etc. Para que a Sacerdotisa interpretasse seus sonhos, os habitantes daquela vila faziam de tudo para sonhar. Caso contrário, uma grande desgraça poderia acontecer. Em outras culturas dali, durante o café-da-manhã os familiares se reúnem e cada um conta o que sonhou durante a noite, os sonhos são discutidos pelo grupo e assim as decisões são tomadas naquela coletividade. 

E é ainda mais interessante quando pensamos nas antigas civilizações: para os egípcios os sonhos eram mensagens dos deuses, para os chineses ao adormecer as almas encontravam-se com os mortos e os sonhos seriam lembranças desses encontros, para os gregos os encontros dos sonhos eram com os deuses. Bem, esse hábito precioso se perdeu na cultura ocidental racionalizada ao extremo, mas vem sendo resgatado pela Psicologia Analítica e outras correntes teóricas que prezam pelo símbolo.

A FUNÇÃO GERAL DOS SONHOS É A DE COMPENSAR,  através dos sonhos temos uma balança psicológica, que favorece o nosso equilíbrio psíquico. Dessa forma, além de compensar conteúdos da personalidade global do indivíduo, os sonhos podem ainda atuar com uma função premonitória: “Se o aviso dos sonhos são rejeitados, podem ocorrer acidentes fatais" (Jung,1964).

Agora pode ser que você se pergunte, do que adianta o analista acompanhar meus sonhos se eu mesmo posso fazê-lo? Bem, além do fato de o analista ter as prerrogativas teóricas e técnicas para o auxílio no bem-estar global dos seus pacientes - não somente para a análise do sonho, este profissional entende a imagem do sonho como a melhor expressão daquilo que não conhecemos e por isso pode auxilia-lo bastante durante sua jornada em busca de si mesmo. As imagens que chegam a nós como representativas do mundo exterior são exatamente as mesmas usadas pela nossa psique para exprimir nosso mundo interior.

O inconsciente se comunica com a dimensão consciente através de imagens, sendo anteriores à própria linguagem verbal. Assim, nunca deixem de ter em conta que a comunicação que os sonhos estabelecem conosco cada noite constituem um modo bastante significativo de expressão espontânea do inconsciente. Não perca a oportunidade de escutar os seus!

quarta-feira, 21 de março de 2012

Você reconhece seus potenciais não desenvolvidos?


Você reparou que certas idéias ou temas costumam ser os motores de nossas vidas desde a infância? Seja no seu interesse por música, arte, literatura; seja no seu interesse pelo desenvolvimento social, comunitário; no interesse por sempre desvendar algo novo, "cada ser tem sonhos a sua maneira", diria o compositor Lula Queiroga. 


Muitas vezes esquecemos a quê viemos ao mundo. No entanto, nossos potenciais sempre estiveram e estão ainda em nosso mundo interior.


Este é o reino no qual penetramos durante o sono. Todos os ogros e auxiliares secretos de nossa infância habitam nele, lá reside toda a mágica da infância. E, o que é mais importante, todas as potencialidades vitais que jamais conseguimos levar à realização adulta, aquelas outras partes de nós mesmos, aí estão; pois essas sementes douradas não desaparecem. Se pelo menos uma ínfima parcela dessa totalidade perdida pudesse ser trazida à luz do dia, experimentaríamos uma maravilhosa expansão dos nossos poderes, uma vívida renovação da vida. Atingiríamos a estatura de um arranha-céu. Além disso, se pudéssemos recuperar algo esquecido, não apenas por nós mesmos, mas por toda a geração ou por toda a civilização a que pertencemos, poderíamos vir a ser verdadeiramente portadores da boa nova, heróis culturais do nosso tempo - personagens do momento histórico local e mundial.
  
("O Herói de Mil Faces", Joseph Campbell, 2010).


A vida segue, crescemos, esquecemos nossos primeiros sonhos e optamos pelos caminhos mais tradicionais, já trilhados, é mais fácil. Seria como seguir um roteiro e assim a vida estaria completa e os desejos estariam satisfeitos. Mas será que é assim mesmo que acontece? Por que tantas vezes não nos sentimos satisfeitos com o que conquistamos? Porque o desejo de algo mais continua? 


A psicologia analítica responde que assim como os heróis da mitologia, nós humanos também passamos por fases e travessias - nossa Odisséia pessoal. Para quem conhece as aventuras de Odisseu (herói da mitologia grega) sabe que sua jornada ia se transformando de acordo com os monstros e obstáculos que ele ia enfrentando e a aprendizagem que obtinha. Odisseu só chegou ao seu destino quando já não tinha pendências com os "deuses", isto é, consigo mesmo. 

Essa experiência contada por um livro milenar e fundante da nossa civilização Ocidental, fala sobre como a conquista de si mesmo é mais difícil que a conquista do entorno e termina por ser nossa última meta. Jung dizia que hoje em dia, os "deuses" tornaram-se doenças. O fundador da psicologia analítica quer deixar explícito com essa afirmação como todas as potencialidades, vícios, excessos, qualidades antigamente atribuídos aos deuses mitológicos e cultuados pela sociedade, foram reprimidos da consciência humana e hoje viraram sintomas.

Cada um de nós tem dentro de si sementes em potencial que apontam o que é importante desenvolver, através de que caminho conquistar a si mesmo e satisfazer pouco a pouco a inquietação de um sentido de vida. Cada um de nós tem um mito pessoal. Essas potencialidades esquecidas e, muitas vezes, reprimidas são a chave para uma qualidade de vida melhor, a psicoterapia analítica é um meio importante para esse contato. Os deuses, as bruxas e as fadas-madrinha de nossa infância estão a postos para serem resgatados e para ajudar-nos na conquista de nosso bem-estar.   

segunda-feira, 5 de março de 2012

A busca e o encontro da psicoterapia.

-            É preciso estar doente para buscar ajuda psicológica?, perguntava-me dia desses um amigo.


Não. Para os que têm dúvida, saibam que a psicoterapia –em especial de base junguiana- visa integrar o ser humano com seus lados sombrios, poucos aceitos pelos outros ou por ele mesmo, torná-lo mais coerente, menos dividido, em suma, completar o círculo para que não seja unilateral, evitando sofrimento.


Fernando Pessoa diz:
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

E se ainda restam dúvidas, seguimos. É a tentativa de que aquele ser racional e pragmático, possa encontrar e identificar melhor seus sentimentos e intuições e saber expressá-los e segui-los, preservando assim as suas relações mais próximas. Ou que a pessoa emotiva e em ebulição, acalme seus tormentos e equilibre seus potenciais do intelecto e da ação.

Porém, antes de nos aproximarmos dessa finalidade existencial –de integrar opostos-, sofremos muito com nossos conflitos, inadaptações, relacionamentos, dificuldades familiares, de sentido de vida, dúvidas. Isso é milenar, quer dizer, arquetípico. Logo, pensemos uma questão importante: por que então essas dinâmicas milenares das relações humanas hoje viraram doença e são medicadas?

A prática “normalizadora” das instituições religiosas e médicas vem nos enquadrando desde a Idade Média, muitas vezes desconsiderando nossos comportamentos como adaptações às mudanças culturais e sociais. Isto é, as indicações para diagnosticar e chegar a medicar alguém, poucas vezes têm em conta o caráter determinante das condições socioeconômicas e da psique coletiva. O que se busca é silenciar o sintoma.  
Dito isso, quero lembrar que a Psicologia Analítica vem para promover o encontro entre as expressões e as necessidades da psique. Guiados por Jung, recordamos que não se trata apenas de saber como domar e subjugar a psique; é preciso que saibamos um mínimo sobre o desenvolvimento da alma ou das suas funções para que em um nível cultural mais completo o desenvolvimento possa substituir a dominação.

Quando passamos a ver o cliente como portador de uma mensagem, que pode inclusive ser coletiva, a doença nesse caso pode ser, no máximo, o sofrimento que a todos atormenta.